20131025

Da purificação gerada pela nobre arte de engraxar

Como o vulgar homem medianamente decente sabe, a consequência directa de uns dias de precipitação ligeira, como foram os últimos, é a dedicação à nobre arte de engraxar o arsenal de sapatos possuído, tanto individual, como do agregado familiar, caso se verifique a hipótese muito remota, nos dias contemporâneos, de que este exista e se mantenha. A nobre arte está hoje em extinção, por motivos totalmente absurdos que iremos dissecar neste apontamento, e é um dos últimos redutos do saber e do labor masculino, por motivos totalmente deprimentes. Na verdade, sobre este último tema, é irresistível assinalar que um dos maiores paradoxos estéticos da contemporaniedade é a contemplação permanente nas ruas e nas empresas da cidade de uma jovem ou madura mulher calçada, em ambiente lúdico ou profissional, com um exemplar, em género sapato ou bota, de assinatura reunindo todas as marcas fundamentais do calçado feminino, design distinto, material de topo e pormenor de arrojo, como o salto agulha, conspurcadas por um coro gasto, sujo e manchado por água, lama, e três lágrimas de iogurte magro marca branca, adquiridos devido ao deficiente formato da bancada da cozinha da empresa. Tal dever-se-á certamente, e pensando apenas no contexto português, a alguns equívocos de percurso e éticos, dos quais, por razões de espaço, se enumeram apenas alguns como a não passagem na infância pelo Instituto de Odivelas, a cedência aos padrões culturais dominantes no momento, entre os quais impera o paradigma da não perda de tempo com actividades de saber complexo, labor intenso e duração extensa e, principalmente, à incapacidade de assimilar a importância da nobre arte que aqui nos ocupa. De facto, o que está em causa, milenarmente, como assinalam, entre outros, Platão, Ovídio, a Bíblia e o Corão, é um acto de purificação, onde, primeiro, o homem se liberta daquilo em que o meio o quer afundar, lama, terra, pó, dejectos de pombo, cão, gato e outros animais domésticos, e, depois, mostra a sua força perante os elementos e a circunstância, renovando e reciclando, transformando novamente em puro e brilhante o que trouxe para casa conspurcado, sujo, submerso e gasto. Uns sapatos cuidados e brilhantes são o espelho de um homem que aceita e responde a um desafio, milimetricamente igual ao pecado, que diariamente o assalta e contra o qual, racionalmente, parte e termina derrotado. Daí, a beleza da coisa. Não querendo entrar em pormenores, o acto purificante exige o domínio de alguns factos básicos e de igual número de operações. Antes de tudo o mais, há que separar sapatos e botas de couro integral e genuíno, de todos os outros feitos com as inúmeras derivações criadas pelo mercado e pela tecnologia, como o nubuck ou o couro sintético, normalmente aplicados em botas de caminhada, chuteiras de rugby ou futebol, e "ténis" de corrida. Em relação aos primeiros, os de couro integral e genuíno, a regra de ouro é amaldiçoar e recusar todos os produtos milagrosos da socieadade de consumo, como os cremes e escovas auto-brilhantes e seus pares. Normalmente, são feitos de água e químicos, não limpam, não protegem, não iluminam e estragam o material. Assim, uma boa graxa autêntica, gordurosa, densa e com plasticidade, é fundamental. A operação exige, inicialmente, um pano macio para tirar os elementos de superfície, uma escova de dentes, para passar a graxa na zona de amarração entre a sola e o couro, uma esponja para espalhar a graxa no couro, e uma boa escova macia para iluminar o objecto. No que se relaciona com sapatos e botas de couro sintético ou de materias híbridos ou compósitos, a questão é muito mais complexa. Com efeito, há um enorme fosso entre a oferta do mercado, avassaladora, e a adequação dos produtos que publicita aos tipos de calçado que cada um possui. O fosso é cavado por toda uma geração de profissionais de serviços de sapataria, das lojas de venda aos sapateiros, sem formação, que normalmente aconselham produtos muito pouco adequados. Há aqui um nicho de mercado para um bom sargento Comando ou da GNR na reserva, ou para um velho caminhante cujos músculos estão já demasiado cansados, aptos e com vontade de prestarem alguns tão necessários serviços de aconselhamento. Das minhas constantes e já velhas peregrinações e consultas, de que resultou um investimento pesado e inútil, saliento apenas como válido o shampoo "superactif" da Grison. Apetrechado com o produto indicado, a operação inicia-se, à semelhança da já partilhada para couro genuíno, com a passagem do pano para retirar " a maior". Em sapatos de caminhada ou chuteiras, cuja função briosa é ajudar o seu proprietário a vencer terrenos rugosos e difíceis, como trilhos pantanosos ou relvados inundados, a operação seguinte é retirar a terra ou a lama da sola. Para esta, o ideal é um objecto rijo mas não cortante, apurado mas não esguio, que consiga afastar os elementos dos contornos da sola. Um dos mais adequados que conheço é uma colher de chá. Após esta laboriosa operação, que exige concentração e paciência, porque os elementos recusam-se a facilmente abandonar o conforto maternal da sola, aplica-se o funcional shampoo em generosas quantidades por toda a superfície, esfregando-se depois, lenta e minuciosamente, toda a superfície com uma escova de pelo rijo, quase de aço. A fechar, seca-se com o paninho, e, mais tarde, volta-se à cena do crime, para aplicar um impermeabilizante. A nobre arte de engraxar deve ser executada em ambiente recolhido e nobre, que potencia a concentração e o desejo de libertar a beleza daquilo que está encerrado em fealdade, e será muito útil ao amante da arte que esteja em solidão ou que partilhe a sua melancólica existência com uma profissional de valor que esteja rotineiramente fixada 18 horas no seu local de trabalho, como é o caso das advogadas de direito fiscal, das jornalistas ou das directoras de marketing. Na verdade, os não iniciados na nobre arte, ou aqueles que tiveram uma limitada educação espiritual, tendem curiosamente a concentrar-se nos resíduos expurgados, e não na pacífica e iluminada paisagem encantadora gerada por uns sapatos imaculados.

1 comentário:

  1. Várias ponderações de importância irrelevante assaltaram o meu pensamento (basicamente tudo o que me vem ao pensamento é de importância irrelevante, mas isso agora não é chamado à questão):
    . O que espelha um homem que anda descalço?
    . Adoraria ler uma análise detalhada escrita pelo Vegar dedicada à magnífica e ancestral arte da renda de bilros, apesar de saber à priori que dificilmente teria tempo suficiente para a ler até ao fim.
    . Depois de ler o texto, fui invadida por um total conforto físico e mental por estar hoje calçada com uma Melissas. Sinto-me assim completamente "oblivious" a toda esta problemática, devido ao facto de que isto que trago nos pés se lava na máquina de lavar roupa a 30º.

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